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Santinho

(Luiz Fernando Veríssimo)



Me lembro com clareza de todas as minhas professoras, mas me lembro de uma em particular. Ela se chamava Dona Ilka. Curioso: por que escrevi “Dona Ilka” e não Ilka? Talvez por medo de que ela se materializasse aqui ao meu lado e exigisse o “Dona”, onde se viu tratar professora pelo primeiro nome, menino? No meu tempo ainda não se usava o “tia”. Elas podiam ser boas e até maternais, mas decididamente não eram nossas tias. A Dona Ilka não era maternal. Era uma mulher pequena com um perfil de passarinho. Um pequeno passarinho loiro. E uma fera.

Eu era aluno “bem-comportado”. Era um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído. Mas comportamento, 10. Por isto até hoje faço verdadeiras faxinas na memória, procurando embaixo de tudo e em todos os nichos a razão de ter sido, um dia, castigado pela Dona Ilka. Alguma eu devo ter feito, mas não consigo lembrar o quê. O fato é que fui posto de castigo. Que consistia em fcar de pé num canto da sala de aula, com a cara virada para a parede. (Isto tudo, já dá pra ver, foi mais ou menos lá pela Idade Média.) Mas o que eu nunca esqueci foi a Dona Ilka ter me chamado de “santinho do pau oco”.

Ser bem-comportado em aula não era uma decisão minha nem era nada de que me orgulhasse. Era só o meu temperamento. Mas a frase terrível da Dona Ilka sugeria que a minha boa conduta era uma simulação. Eu era um falso. Um santo falsificado! Depois disso, pelo resto da vida, não foram poucas as vezes em que um passarinho imaginário com perfil de professora pousou no meu ombro e me chamou de fingido. Os santinhos do pau oco passam a vida se questionando.

Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária. Era para fazer uma redação em aula sobre a ociosidade, e eu não tinha a menor ideia do que era ociosidade. Se a palavra fora mencionada em aula tinha certamente sido num dos meus períodos de devaneio, em que o corpo ficava ali, mas a mente ia passear. E então, me achando formidável, fiz uma redação inteira sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade sem saber o que é isso, sua agonia e finalmente sua decisão de fazer uma redação sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade, etc. a professora chamou a atenção de toda a classe para a minha redação. Eu era um exemplo de quem acha que com esperteza pode-se deixar de estudar e por isto estava ganhando um zero exemplar. Só faltou me chamar de original do pau oco.

Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens, mas não me lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudomães, no primário, eram mais profundas. As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes.

O sufixo “-inho”, presente no título, cumpre papel expressivo denotando um sentido:
  • A: irônico.
  • B: cordial.
  • C: cômico.
  • D: literal.

Felicidade bioquímica

Os cientistas sociais distribuem questionários de bem-estar subjetivo e correlacionam os resultados com fatores socioeconômicos como riqueza e liberdade política. Os biólogos usam os mesmos questionários, mas correlacionam as respostas fornecidas pelas pessoas com fatores bioquímicos e genéticos. Suas descobertas são chocantes.

Os biólogos sustentam que nosso mundo mental e emocional é governado por mecanismos bioquímicos definidos por milhões de anos de evolução. Como todos os outros estados mentais, nosso bem-estar subjetivo não é determinado por parâmetros externos como salário, relações sociais ou direitos políticos. Em vez disso, é determinado por um complexo sistema de nervos, neurônios, sinapses e várias substâncias bioquímicas como serotonina, dopamina e oxitocina.

Ninguém fica feliz por ganhar na loteria, comprar uma casa, obter uma promoção ou encontrar o amor verdadeiro. As pessoas ficam felizes por um único motivo: sensações agradáveis em seu corpo. Uma pessoa que acabou de ganhar na loteria ou de encontrar um novo amor e pula de alegria na verdade não está reagindo ao dinheiro ou ao fato de ser amado. Está reagindo a vários hormônios que inundam sua corrente sanguínea e à tempestade de sinais elétricos pipocando em diferentes partes de seu cérebro.

(Adaptado de: HARARI, Yuval Noah. Sapiens − Uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018, p. 396-97)

Da leitura do terceiro parágrafo do texto deve-se depreender que
  • A: o fato de se ganhar na loteria ou de se encontrar um amor verdadeiro não atua, efetivamente, sobre nossas sensações de origem bioquímica.
  • B: costumamos ser iludidos por sensações de bem-estar quando provocadas pela ação de substâncias bioquímicas sobre o nosso corpo.
  • C: as emoções que efetivamente tomam conta de nós levam-nos a manifestações subjetivas que se devem, de fato, a condicionantes de ordem objetiva.
  • D: as sensações agradáveis que nos assaltam devem-se quase sempre a estímulos bioquímicos produzidos aleatoriamente por nosso cérebro.
  • E: elementos constitutivos da nossa vida cotidiana costumam já ser previamente valorizados por conta da ação de neurônios e sinapses.

Santinho

(Luiz Fernando Veríssimo)



Me lembro com clareza de todas as minhas professoras, mas me lembro de uma em particular. Ela se chamava Dona Ilka. Curioso: por que escrevi “Dona Ilka” e não Ilka? Talvez por medo de que ela se materializasse aqui ao meu lado e exigisse o “Dona”, onde se viu tratar professora pelo primeiro nome, menino? No meu tempo ainda não se usava o “tia”. Elas podiam ser boas e até maternais, mas decididamente não eram nossas tias. A Dona Ilka não era maternal. Era uma mulher pequena com um perfil de passarinho. Um pequeno passarinho loiro. E uma fera.

Eu era aluno “bem-comportado”. Era um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído. Mas comportamento, 10. Por isto até hoje faço verdadeiras faxinas na memória, procurando embaixo de tudo e em todos os nichos a razão de ter sido, um dia, castigado pela Dona Ilka. Alguma eu devo ter feito, mas não consigo lembrar o quê. O fato é que fui posto de castigo. Que consistia em fcar de pé num canto da sala de aula, com a cara virada para a parede. (Isto tudo, já dá pra ver, foi mais ou menos lá pela Idade Média.) Mas o que eu nunca esqueci foi a Dona Ilka ter me chamado de “santinho do pau oco”.

Ser bem-comportado em aula não era uma decisão minha nem era nada de que me orgulhasse. Era só o meu temperamento. Mas a frase terrível da Dona Ilka sugeria que a minha boa conduta era uma simulação. Eu era um falso. Um santo falsificado! Depois disso, pelo resto da vida, não foram poucas as vezes em que um passarinho imaginário com perfil de professora pousou no meu ombro e me chamou de fingido. Os santinhos do pau oco passam a vida se questionando.

Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária. Era para fazer uma redação em aula sobre a ociosidade, e eu não tinha a menor ideia do que era ociosidade. Se a palavra fora mencionada em aula tinha certamente sido num dos meus períodos de devaneio, em que o corpo ficava ali, mas a mente ia passear. E então, me achando formidável, fiz uma redação inteira sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade sem saber o que é isso, sua agonia e finalmente sua decisão de fazer uma redação sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade, etc. a professora chamou a atenção de toda a classe para a minha redação. Eu era um exemplo de quem acha que com esperteza pode-se deixar de estudar e por isto estava ganhando um zero exemplar. Só faltou me chamar de original do pau oco.

Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens, mas não me lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudomães, no primário, eram mais profundas. As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes.

No segundo parágrafo, com o conteúdo entre parênteses, o narrador apresenta, especificamente, um juízo de valor acerca:
  • A: do castigo.
  • B: da professora.
  • C: dos amigos.
  • D: de si mesmo.

Em “Era um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído.” (2º§), percebe-se que as orações são:
  • A: contraditórias semanticamente.
  • B: absolutas entre si.
  • C: dependentes morficamente.
  • D: independentes sintaticamente.

Felicidade bioquímica

Os cientistas sociais distribuem questionários de bem-estar subjetivo e correlacionam os resultados com fatores socioeconômicos como riqueza e liberdade política. Os biólogos usam os mesmos questionários, mas correlacionam as respostas fornecidas pelas pessoas com fatores bioquímicos e genéticos. Suas descobertas são chocantes.

Os biólogos sustentam que nosso mundo mental e emocional é governado por mecanismos bioquímicos definidos por milhões de anos de evolução. Como todos os outros estados mentais, nosso bem-estar subjetivo não é determinado por parâmetros externos como salário, relações sociais ou direitos políticos. Em vez disso, é determinado por um complexo sistema de nervos, neurônios, sinapses e várias substâncias bioquímicas como serotonina, dopamina e oxitocina.

Ninguém fica feliz por ganhar na loteria, comprar uma casa, obter uma promoção ou encontrar o amor verdadeiro. As pessoas ficam felizes por um único motivo: sensações agradáveis em seu corpo. Uma pessoa que acabou de ganhar na loteria ou de encontrar um novo amor e pula de alegria na verdade não está reagindo ao dinheiro ou ao fato de ser amado. Está reagindo a vários hormônios que inundam sua corrente sanguínea e à tempestade de sinais elétricos pipocando em diferentes partes de seu cérebro.

(Adaptado de: HARARI, Yuval Noah. Sapiens − Uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018, p. 396-97)

A conclusão a que chegaram os biólogos em sua pesquisa faz ver que
  • A: nosso bem-estar fica comprometido a cada vez que nos mostramos indiferentes à ação de fatores externos sobre a qualidade mesma do nosso prazer íntimo.
  • B: as sensações de bem-estar que nos tomam produzem-se efetivamente como reações nossas a estímulos que se propagam no nosso sistema bioquímico.
  • C: os fatores socioeconômicos que determinam a vida humana repercutem de forma direta nas impressões subjetivas que se traduzem como um bem-estar.
  • D: a atividade hormonal que atua na nossa corrente sanguínea traduz de modo imediato a qualidade já atribuída aos prazeres oferecidos pela vida social.
  • E: a evolução da espécie humana consumou-se pela propagação de um bem-estar devida a contínuos ajustes de nossas percepções motoras.

As locuções adverbiais modificam o sentido atribuído pelo verbo. Assim, assinale a alternativa cujo fragmento transcrito do texto NÃO destaca um exemplo desse tipo de locução.
  • A: "Me lembro com clareza de todas as minhas professoras” (1º§).
  • B: “em que um passarinho imaginário com perfil de professora” (3º§).
  • C: “Que consistia em ficar de pé num canto da sala de aula” (2º§).
  • D: “Eu era um exemplo de quem acha que com esperteza pode-se deixar de estudar” (4º§).

Santinho

(Luiz Fernando Veríssimo)



Me lembro com clareza de todas as minhas professoras, mas me lembro de uma em particular. Ela se chamava Dona Ilka. Curioso: por que escrevi “Dona Ilka” e não Ilka? Talvez por medo de que ela se materializasse aqui ao meu lado e exigisse o “Dona”, onde se viu tratar professora pelo primeiro nome, menino? No meu tempo ainda não se usava o “tia”. Elas podiam ser boas e até maternais, mas decididamente não eram nossas tias. A Dona Ilka não era maternal. Era uma mulher pequena com um perfil de passarinho. Um pequeno passarinho loiro. E uma fera.

Eu era aluno “bem-comportado”. Era um vagabundo, não aprendia nada, vivia distraído. Mas comportamento, 10. Por isto até hoje faço verdadeiras faxinas na memória, procurando embaixo de tudo e em todos os nichos a razão de ter sido, um dia, castigado pela Dona Ilka. Alguma eu devo ter feito, mas não consigo lembrar o quê. O fato é que fui posto de castigo. Que consistia em fcar de pé num canto da sala de aula, com a cara virada para a parede. (Isto tudo, já dá pra ver, foi mais ou menos lá pela Idade Média.) Mas o que eu nunca esqueci foi a Dona Ilka ter me chamado de “santinho do pau oco”.

Ser bem-comportado em aula não era uma decisão minha nem era nada de que me orgulhasse. Era só o meu temperamento. Mas a frase terrível da Dona Ilka sugeria que a minha boa conduta era uma simulação. Eu era um falso. Um santo falsificado! Depois disso, pelo resto da vida, não foram poucas as vezes em que um passarinho imaginário com perfil de professora pousou no meu ombro e me chamou de fingido. Os santinhos do pau oco passam a vida se questionando.

Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária. Era para fazer uma redação em aula sobre a ociosidade, e eu não tinha a menor ideia do que era ociosidade. Se a palavra fora mencionada em aula tinha certamente sido num dos meus períodos de devaneio, em que o corpo ficava ali, mas a mente ia passear. E então, me achando formidável, fiz uma redação inteira sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade sem saber o que é isso, sua agonia e finalmente sua decisão de fazer uma redação sobre um aluno que precisa fazer uma redação sobre a ociosidade, etc. a professora chamou a atenção de toda a classe para a minha redação. Eu era um exemplo de quem acha que com esperteza pode-se deixar de estudar e por isto estava ganhando um zero exemplar. Só faltou me chamar de original do pau oco.

Enfim, sobrevivi. No ginásio, todos os professores eram homens, mas não me lembro de nenhuma marca que algum deles tenha deixado. As relações com as nossas pseudomães, no primário, eram mais profundas. As duas histórias que eu contei não têm nenhuma importância. Mas olha as cicatrizes.

Considerando o sentido da palavra “ociosidade”, que foi tema da redação descrita no texto, pode-se entender como antônimo desse vocábulo:
  • A: lealdade.
  • B: desocupação.
  • C: animação.
  • D: trabalho.

Considere o fragmento abaixo para responder a questão seguinte.

“Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária.”

O acento grave deixaria de ser obrigatório na seguintes reescritura:
  • A: destruiu para sempre qualquer pretensão minha à escrita.
  • B: destruiu para sempre qualquer pretensão à literatura original.
  • C: destruiu para sempre qualquer pretensão à minha originalidade.
  • D: destruiu para sempre qualquer pretensão àquela escrita literária.

Considere o fragmento abaixo para responder a questão seguinte.

“Já outra professora quase destruiu para sempre qualquer pretensão minha à originalidade literária.”

Assinale o vocábulo, destacado do trecho, que apresenta, exatamente, a mesma classificação morfológica de “outra”:
  • A: “minha”.
  • B: “sempre”.
  • C: “quase".
  • D: “qualquer”.

Em “e eu não tinha a menor ideia do que era ociosidade”(4º§), o vocábulo destacado perdeu o acento gráfico após a implementação do Novo Acordo Ortográfico. O mesmo aconteceu com todas as palavras abaixo, EXCETO:
  • A: joia.
  • B: feiura.
  • C: heroi.
  • D: enjoo.

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