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       A indústria do espírito

JORDI SOLER – 23 DEZ 2017 - 21:00

O filósofo Daniel Dennett propõe uma fórmula para alcançar a felicidade: “Procure algo mais importante que você e dedique sua vida a isso”.

Essa fórmula vai na contracorrente do que propõe a indústria do espírito no século XXI, que nos diz que não há felicidade maior do que essa que sai de dentro de si mesmo, o que pode ser verdade no caso de um monge tibetano, mas não para quem é o objeto da indústria do espírito, o atribulado cidadão comum do Ocidente que costuma encontrar a felicidade do lado de fora, em outra pessoa, no seu entorno familiar e social, em seu trabalho, em um passatempo, etc. [...]

A indústria do espírito, uma das operações mercantis mais bem-sucedidas de nosso tempo, cresceu exponencialmente nos últimos anos, é só ver a quantidade de instrutores e pupilos de mindfulness e de ioga que existem ao nosso redor. Mindfulness e ioga em sua versão pop para o Ocidente, não precisamente as antigas disciplinas praticadas pelos mestres orientais, mas um produto prático e de rápida aprendizagem que conserva sua estética, seu merchandising e suas toxinas culturais. [...]

Frente ao argumento de que a humanidade, finalmente, tomou consciência de sua vida interior, por que demoramos tanto em alcançar esse degrau evolutivo?, proporia que, mais exatamente, a burguesia ocidental é o objetivo de uma grande operação mercantil que tem mais a ver com a economia do que com o espírito, a saúde e a felicidade da espécie humana. [...]

A indústria do espírito é um produto das sociedades industrializadas em que as pessoas já têm muito bem resolvidas as necessidades básicas, da moradia à comida até o Netflix e o Spotify. Uma vez instalada no angustiante vazio produzido pelas necessidades resolvidas, a pessoa se movimenta para participar de um grupo que lhe procure outra necessidade.

Esse crescente coletivo de pessoas que cavam em si mesmas buscando a felicidade já conseguiu instalar um novo narcisismo, um egocentrismo new age, um egoísmo raivosamente autorreferencial que, pelo caminho, veio alterar o famoso equilíbrio latino de mens sana in corpore sano, desviando-o descaradamente para o corpo. [...]

Esse inovador egocentrismo new age encaixa divinamente nessa compulsão contemporânea de cultivar o físico, não importa a idade, de se antepor o corpore à mens. Ao longo da história da humanidade o objetivo havia sido tornar-se mais inteligente à medida que se envelhecia; os idosos eram sábios, esse era seu valor, mas agora vemos sua claudicação: os idosos já não querem ser sábios, preferem estar robustos e musculosos, e deixam a sabedoria nas mãos do primeiro iluminado que se preste a dar cursos. [...]

Parece que o requisito para se salvar no século XXI é inscrever-se em um curso, pagar a alguém que nos diga o que fazer com nós mesmos e os passos que se deve seguir para viver cada instante com plena consciência. Seria saudável não perder de vista que o objetivo principal dessas sessões pagas não é tanto salvar a si mesmo, mas manter estável a economia do espírito que, sem seus milhões de subscritores, regressaria ao nível que tinha no século XX, aquela época dourada do hedonismo suicida, em que o mindfulness era patrimônio dos monges, a ioga era praticada por quatro gatos pingados e o espírito era cultivado lendo livros em gratificante solidão.

(Adaptado de: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/26/opinion/1506452714_976157.html>. Acesso em 27 mar. 2018)




Sobre o emprego dos modos e dos tempos verbais no texto “A indústria do espírito”, assinale a alternativa correta.





  • A: Em "O filósofo Daniel Dennett propõe uma fórmula para alcançar a felicidade [...]", o verbo em destaque é utilizado no presente do indicativo e expressa a ideia de ação que acontece ao mesmo tempo em que se fala.
  • B: Tanto em "Procure algo mais importante que você e dedique sua vida a isso." quanto em “[...] a pessoa se movimenta para participar de um grupo que lhe procure outra necessidade.", os verbos em destaque são utilizados para indicar uma ordem.
  • C: Em “[...] não há felicidade maior do que essa que sai de dentro de si mesmo, o que pode ser verdade no caso de um monge tibetano [...]”, a expressão em destaque pode ser substituída por “é”, sem que isso cause prejuízo sintático ou semântico, uma vez que
  • D: Em “[...] o objetivo principal dessas sessões [é] manter estável a economia do espírito que, sem seus milhões de subscritores, regressaria ao nível que tinha no século XX [...]”, a flexão do verbo “regressaria” no futuro do pretérito do indicativo indica
  • E: Em "A indústria do espírito [...] cresceu exponencialmente nos últimos anos [...]", o verbo em destaque poderia ser substituído tanto por "tinha crescido" quanto por “crescera”, pois ambas as formas estão flexionadas no mesmo tempo verbal e conferem ao e

 Texto I

Nossa imaginação precisa da literatura mais do que nunca

LIGIA G. DINIZ – 22 FEV 2018 - 18:44

Vamos partir de uma situação que grande parte de nós já vivenciou. Estamos saindo do cinema, depois de termos visto uma adaptação de um livro do qual gostamos muito. Na verdade, até que gostamos do filme também: o sentido foi mantido, a escolha do elenco foi adequada, e a trilha sonora reforçou a camada afetiva da narrativa. Por que então sentimos que algo está fora do lugar? [...]

O que sempre falta em um filme sou eu. Parto dessa ideia simples e poderosa, sugerida pelo teórico Wolfgang Iser em um de seus livros, para afirmar que nunca precisamos tanto ler ficção e poesia quanto hoje, porque nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o mecanismo livre da nossa imaginação. Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página.

Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores. Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se tornem um mundo no qual penetramos. [...]

Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de “presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para além e para aquém do pensamento racional.

Muitos eventos produzem presença, é claro: jogos e exercícios esportivos, shows de música, encontros com amigos, cerimônias religiosas e relações amorosas e sexuais são exemplos óbvios. Por que, então, defender uma prática eminentemente intelectual, como a experiência literária, com o objetivo de “produzir presença”, isto é, de despertar sensações corpóreas e afetos? A resposta está, como já evoquei mais acima, na potência guardada pela ficção e a poesia para disparar a imaginação. [...]

A leitura de textos literários [...] exige que nosso corpo esteja ele próprio presente no espaço ficcional com que nos deparamos, sob pena de não existir espaço ficcional algum.

Mais ainda, a experiência literária nos dá a chance de vivenciarmos possibilidades que, no cotidiano, estão fechadas a nós: de explorarmos essas possibilidades como se estivéssemos, de fato, presentes. E a imaginação é o palco em que a vivência dessas possibilidades é encenada, por meio do jogo entre identificações e rejeições. [...]

(Adaptado de:<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/22/opinion/1519332813_987510.html> . Acesso em: 27 mar. 2018)




Em relação ao excerto “Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente.”, assinale a alternativa correta.





  • A: O trecho “[...] todo dia, o dia inteiro [...]” poderia ser reescrito da seguinte forma: “todo dia, o dia todo”. Nesse último caso, a palavra “todo” funcionaria como adjetivo nas duas ocorrências, indicando totalidade.
  • B: Em “Somos bombardeados todo dia [...]”, é utilizada a figura de linguagem que leva o nome de anáfora, uma vez que é atribuída a um ser inanimado (informações) a característica de um ser animado (a capacidade de bombardear).
  • C: O excerto é constituído por períodos simples, típicos de textos argumentativos. Esse tipo de construção proporciona o desenvolvimento detalhado de ideias, com adição de circunstâncias e de caracterizações mais apuradas dos eventos.
  • D: O verbo “somos”, flexionado no presente do indicativo, denota uma ação que ocorre concomitantemente ao momento da fala.
  • E: É possível substituir a palavra “saturados” por “fartos”, sem com isso causar prejuízo sintático ou semântico.

Texto I

O Aleph e o Hipopótamo I

                                                                                             Leandro Karnal

O tempo é uma grandeza física. Está por todos os lados e em todos os recônditos de nossas vidas. Dizemos que temos tempo de sobra para algumas coisas ou, às vezes, que não temos tempo para nada. Há dias em que o tempo não passa, anda devagar, como se os ponteiros do relógio (alguém ainda usa modelo analógico?) parecessem pesados. Arrastam-se como se houvesse bolas de ferro em suas engrenagens. Tal é o tempo da sala de espera para ser atendido no dentista ou pelo gerente do banco, por exemplo.

Em compensação, há o tempo que corre, voa, falta. Em nosso mundo pautado pelo estresse, por mais compromissos que a agenda comporta, a sensação de que a areia escorre mais rápido pela ampulheta é familiar e amarga. O tempo escasseia e os mesmos exatos 60 minutos que a física diz que uma hora contém viram uma fração ínfima do tempo de que precisamos.

Vivemos um presente fugidio. Mal falei, mal agi e o que acabei de fazer virou passado, parafraseando o genial historiador Marc Bloch. Não é incomum querermos que o presente dure mais, se estique, para que uma faísca de felicidade pudesse viver alguns momentos mais longos.

Se o presente é esse instante impossível de ser estendido, o passado parece um universo em franca expansão. Quanto mais envelhecemos, como indivíduos e como espécie, mais passado existe, mais parece que devemos nos lembrar, não nos esquecer. Criamos estantes com memorabilia, pastas de computador lotadas de fotos, estocamos papéis e contas já pagas, documentos. Criamos museus, parques, tombamos construções, fazemos estátuas e mostras sobre o passado.

E o futuro? Como nos projetamos nesse tempo que ainda não existe… “Pode deixar que amanhã eu entrego tudo o que falta”; “Semana que vem nos encontramos, está combinado”; “Apenas um mês e… férias!”; “Daqui a um ano eu me preocupo com isso”. Um cotidiano voltado para um tempo incerto, mas que arquitetamos como algo sólido. E tudo o que é sólido se desmancha no ar, não é mesmo? Ah, se pudéssemos ao menos ver o tempo, senti-lo nas mãos, calculá-lo de fato! [...]

Saber sobre tudo que possa vir a ocorrer é um grande desejo. Ele anima as filas em videntes e debates sobre as centúrias de Nostradamus. Infelizmente, pela sua natureza e deficiência, toda profecia deve ser vaga. “Vejo uma viagem no seu futuro”, afirma a mística intérprete das cartas. Jamais poderia ser: no dia 14 de março de 2023, às 17h12, você estará no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro, lendo o conto A Cartomante, de Machado de Assis. Claro que mesmo uma predição detalhada seria problemática, pois, dela sabendo, eu poderia dispor as coisas de forma que acontecessem como anunciado.

Entender o passado em toda a sua vastidão e complexidade, perceber o quanto ele ainda é presente, é o sonho de todos os historiadores, desejo maior de todos os que lotam os consultórios de psicólogos e psicanalistas. [...] Ao narrar o que vi e vivi, dependo da memória. Aquilo de que nos lembramos ou nos esquecemos nem sempre depende de nossa vontade ou escolhas. Quando digo: quero me esquecer disso ou daquilo, efetivamente estou me lembrando da situação. Alguns eventos são tão traumáticos que, como esquadrinhou Freud um século atrás, são bloqueados pela memória. Escamoteados pelo trauma, ficam ali condicionando nossas ações e não ações no presente. [...]

(Adaptado de https://entrelacosdocoracao.com.br/2018/03/o-aleph -e-o-hipopotamo-i/ - Acesso em 26/03/2018)





“O tempo escasseia e os mesmos exatos 60 minutos que a física diz que uma hora contém viram uma fração ínfima do tempo de que precisamos.”

O verbo empregado nos mesmos tempo e modo que o verbo grifado na frase apresentada está grifado em


  • A: “O tempo é uma grandeza física.”.
  • B: “Ah, se pudéssemos ao menos ver o tempo [...]”.
  • C: “[...] efetivamente estou me lembrando da situação”.
  • D: “[...] como se os ponteiros do relógio (alguém ainda usa modelo analógico?) parecessem pesados.”.
  • E: “[...] você estará no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro [...]”.

   Texto I

                              O Aleph e o Hipopótamo I

                                                                                             Leandro Karnal

O tempo é uma grandeza física. Está por todos os lados e em todos os recônditos de nossas vidas. Dizemos que temos tempo de sobra para algumas coisas ou, às vezes, que não temos tempo para nada. Há dias em que o tempo não passa, anda devagar, como se os ponteiros do relógio (alguém ainda usa modelo analógico?) parecessem pesados. Arrastam-se como se houvesse bolas de ferro em suas engrenagens. Tal é o tempo da sala de espera para ser atendido no dentista ou pelo gerente do banco, por exemplo.

Em compensação, há o tempo que corre, voa, falta. Em nosso mundo pautado pelo estresse, por mais compromissos que a agenda comporta, a sensação de que a areia escorre mais rápido pela ampulheta é familiar e amarga. O tempo escasseia e os mesmos exatos 60 minutos que a física diz que uma hora contém viram uma fração ínfima do tempo de que precisamos.

Vivemos um presente fugidio. Mal falei, mal agi e o que acabei de fazer virou passado, parafraseando o genial historiador Marc Bloch. Não é incomum querermos que o presente dure mais, se estique, para que uma faísca de felicidade pudesse viver alguns momentos mais longos.

Se o presente é esse instante impossível de ser estendido, o passado parece um universo em franca expansão. Quanto mais envelhecemos, como indivíduos e como espécie, mais passado existe, mais parece que devemos nos lembrar, não nos esquecer. Criamos estantes com memorabilia, pastas de computador lotadas de fotos, estocamos papéis e contas já pagas, documentos. Criamos museus, parques, tombamos construções, fazemos estátuas e mostras sobre o passado.

E o futuro? Como nos projetamos nesse tempo que ainda não existe… “Pode deixar que amanhã eu entrego tudo o que falta”; “Semana que vem nos encontramos, está combinado”; “Apenas um mês e… férias!”; “Daqui a um ano eu me preocupo com isso”. Um cotidiano voltado para um tempo incerto, mas que arquitetamos como algo sólido. E tudo o que é sólido se desmancha no ar, não é mesmo? Ah, se pudéssemos ao menos ver o tempo, senti-lo nas mãos, calculá-lo de fato! [...]

Saber sobre tudo que possa vir a ocorrer é um grande desejo. Ele anima as filas em videntes e debates sobre as centúrias de Nostradamus. Infelizmente, pela sua natureza e deficiência, toda profecia deve ser vaga. “Vejo uma viagem no seu futuro”, afirma a mística intérprete das cartas. Jamais poderia ser: no dia 14 de março de 2023, às 17h12, você estará no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro, lendo o conto A Cartomante, de Machado de Assis. Claro que mesmo uma predição detalhada seria problemática, pois, dela sabendo, eu poderia dispor as coisas de forma que acontecessem como anunciado.

Entender o passado em toda a sua vastidão e complexidade, perceber o quanto ele ainda é presente, é o sonho de todos os historiadores, desejo maior de todos os que lotam os consultórios de psicólogos e psicanalistas. [...] Ao narrar o que vi e vivi, dependo da memória. Aquilo de que nos lembramos ou nos esquecemos nem sempre depende de nossa vontade ou escolhas. Quando digo: quero me esquecer disso ou daquilo, efetivamente estou me lembrando da situação. Alguns eventos são tão traumáticos que, como esquadrinhou Freud um século atrás, são bloqueados pela memória. Escamoteados pelo trauma, ficam ali condicionando nossas ações e não ações no presente. [...]

(Adaptado de https://entrelacosdocoracao.com.br/2018/03/o-aleph -e-o-hipopotamo-i/ - Acesso em 26/03/2018)



Assinale a alternativa correta.
  • A: Em: “[...] E o futuro? Como nos projetamos nesse tempo que ainda não existe… ‘Pode deixar que amanhã eu entrego tudo o que falta’; ‘Semana que vem nos encontramos, está combinado’ [...]”, todos os termos em destaque têm função de conjunção integrante.
  • B: Em “[...] Há dias em que o tempo não passa, anda devagar, como se os ponteiros do relógio (alguém ainda usa modelo analógico?) parecessem pesados. Arrastam-se como se houvesse bolas de ferro em suas engrenagens.”, predomina a linguagem denotativa.
  • C: Em “[...] Alguns eventos são tão traumáticos que, como esquadrinhou Freud um século atrás, são bloqueados pela memória.”, estabelece-se entre a primeira e a última oração uma relação semântica de consequência.
  • D: Em “[...] Alguns eventos são tão traumáticos que, como esquadrinhou Freud um século atrás, são bloqueados pela memória.”, o elemento em destaque estabelece uma relação semântica de comparação entre os eventos traumáticos e as ideias de Freud.
  • E: Em “[...] Jamais poderia ser: no dia 14 de março de 2023, às 17h12, você estará no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro, lendo o conto A Cartomante, de Machado de Assis.”, os dois pontos são utilizados para apresentar uma citação indireta.

Texto I

                    Os medos que o poder transforma em mercadoria política e comercial

                                                                                                             Zygmunt Bauman

O medo faz parte da condição humana. Poderíamos até conseguir eliminar uma por uma a maioria das ameaças que geram medo (era justamente para isto que servia, segundo Freud, a civilização como uma organização das coisas humanas: para limitar ou para eliminar totalmente as ameaças devidas à casualidade da Natureza, à fraqueza física e à inimizade do próximo): mas, pelo menos até agora, as nossas capacidades estão bem longe de apagar a “mãe de todos os medos”, o “medo dos medos”, aquele medo ancestral que decorre da consciência da nossa mortalidade e da impossibilidade de fugir da morte.

Embora hoje vivamos imersos em uma “cultura do medo”, a nossa consciência de que a morte é inevitável é o principal motivo pelo qual existe a cultura, primeira fonte e motor de cada e toda cultura. Pode-se até conceber a cultura como esforço constante, perenemente incompleto e, em princípio, interminável para tornar vivível uma vida mortal. Ou pode-se dar mais um passo: é a nossa consciência de ser mortais e, portanto, o nosso perene medo de morrer que nos tornam humanos e que tornam humano o nosso modo de ser-no-mundo.

A cultura é o sedimento da tentativa incessante de tornar possível viver com a consciência da mortalidade. E se, por puro acaso, nos tornássemos imortais, como às vezes (estupidamente) sonhamos, a cultura pararia de repente [...].

Foi precisamente a consciência de ter que morrer, da inevitável brevidade do tempo, da possibilidade de que os projetos fiquem incompletos que impulsionou os homens a agir e a imaginação humana a alçar voo. Foi essa consciência que tornou necessária a criação cultural e que transformou os seres humanos em criaturas culturais. Desde o seu início e ao longo de toda a sua longa história, o motor da cultura foi a necessidade de preencher o abismo que separa o transitório do eterno, o finito do infinito, a vida mortal da imortal; o impulso para construir uma ponte para passar de um lado para outro do precipício; o instinto de permitir que nós, mortais, tenhamos incidência sobre a eternidade, deixando nela um sinal imortal da nossa passagem, embora fugaz.

Tudo isso, naturalmente, não significa que as fontes do medo, o lugar que ele ocupa na existência e o ponto focal das reações que ele evoca sejam imutáveis. Ao contrário, todo tipo de sociedade e toda época histórica têm os seus próprios medos, específicos desse tempo e dessa sociedade. Se é incauto divertir-se com a possibilidade de um mundo alternativo “sem medo”, em vez disso, descrever com precisão os traços distintivos do medo na nossa época e na nossa sociedade é condição indispensável para a clareza dos fins e para o realismo das propostas. [...]

(Adaptado de http://www.ihu.unisinos.br/563878-os-medos-que-o -poder-transforma-em-mercadoria-politica-e-comercial-artigo-dezygmunt-bauman - Acesso em 26/03/2018)




Conjunções ou locuções conjuntivas são palavras invariáveis utilizadas para ligar orações ou palavras da mesma oração. As conjunções destacadas nos trechos a seguir estabelecem determinados sentidos, introduzindo uma relação semântica entre as orações. Assinale a alternativa que apresenta, entre parênteses, a interpretação correta da conjunção destacada.





  • A: “[...] é a nossa consciência de ser mortais e, portanto, o nosso perene medo de morrer que nos tornam humanos [...]” (justificativa)
  • B: “[...] se, por puro acaso, nos tornássemos imortais, como às vezes (estupidamente) sonhamos, a cultura pararia de repente [...]” (causa)
  • C: “Se é incauto divertir-se com a possibilidade de um mundo alternativo ‘sem medo’, em vez disso, descrever com precisão os traços distintivos do medo na nossa época e na nossa sociedade é condição indispensável.” (hipótese)
  • D: "[...] interminável para tornar vivível uma vida mortal. Ou pode-se dar mais um passo: é a nossa consciência de ser mortais [...]” (finalidade)
  • E: “Embora hoje vivamos imersos em uma ‘cultura do medo’, a nossa consciência de que a morte é inevitável.” (consequência)

            Texto II

      “Eu era piloto…

Quando ainda estava no sétimo ano, um avião chegou à nossa cidade. Isso naqueles anos, imagine, em 1936. Na época, era uma coisa rara. E então veio um chamado: ‘Meninas e meninos, entrem no avião!’. Eu, como era komsomolka*, estava nas primeiras filas, claro. Na mesma hora me inscrevi no aeroclube. Só que meu pai era categoricamente contra. Até então, todos em nossa família eram metalúrgicos, várias gerações de metalúrgicos e operadores de altos-fornos. E meu pai achava que metalurgia era um trabalho de mulher, mas piloto não. O chefe do aeroclube ficou sabendo disso e me autorizou a dar uma volta de avião com meu pai. Fiz isso. Eu e meu pai decolamos, e, desde aquele dia, ele parou de falar nisso. Gostou. Terminei o aeroclube com as melhores notas, saltava bem de paraquedas. Antes da guerra, ainda tive tempo de me casar e ter uma filha.

Desde os primeiros dias da guerra, começaram a reestruturar nosso aeroclube: os homens foram enviados para combater; no lugar deles, ficamos nós, as mulheres. Ensinávamos os alunos. Havia muito trabalho, da manhã à noite. Meu marido foi um dos primeiros a ir para o front. Só me restou uma fotografia: eu e ele de pé ao lado de um avião, com capacete de aviador… Agora vivia junto com minha filha, passamos quase o tempo todo em acampamentos. E como vivíamos? Eu a trancava, deixava mingau para ela, e, às quatro da manhã, já estávamos voando. Voltava de tarde, e se ela comia eu não sei, mas estava sempre coberta daquele mingau. Já nem chorava, só olhava para mim. Os olhos dela são grandes como os do meu marido…

No fim de 1941, me mandaram uma notificação de óbito: meu marido tinha morrido perto de Moscou. Era comandante de voo. Eu amava minha filha, mas a mandei para ficar com os parentes dele. E comecei a pedir para ir para o front…

Na última noite… Passei a noite inteira de joelhos ao lado do berço…”

Antonina Grigórievna Bondareva, tenente da guarda, piloto* komsomolka: a jovem que fazia parte do Komsomol, Juventude do Partido Comunista da União Soviética.

(Disponível em: ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução de Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.)




Sobre a pontuação e a crase empregadas no texto II, assinale a alternativa correta.

  • A: O texto apresenta reticências em diversas passagens. Nesses casos, tal pontuação é utilizada para indicar uma enumeração inconclusa, podendo ser substituída por “etc.”.
  • B: Em “E então veio um chamado: ‘Meninas e meninos, entrem no avião!’”, o sinal de dois-pontos é utilizado para introduzir uma explicação.
  • C: Em “Isso naqueles anos, imagine, em 1936.”, o uso de vírgulas é obrigatório, uma vez que elas isolam um vocativo.
  • D: Em “Quando ainda estava no sétimo ano, um avião chegou à nossa cidade”, a crase é facultativa.
  • E: Em “Havia muito trabalho, da manhã à noite.”, a crase é facultativa.

 Texto I

                    Os medos que o poder transforma em mercadoria política e comercial

                                                                                                             Zygmunt Bauman

O medo faz parte da condição humana. Poderíamos até conseguir eliminar uma por uma a maioria das ameaças que geram medo (era justamente para isto que servia, segundo Freud, a civilização como uma organização das coisas humanas: para limitar ou para eliminar totalmente as ameaças devidas à casualidade da Natureza, à fraqueza física e à inimizade do próximo): mas, pelo menos até agora, as nossas capacidades estão bem longe de apagar a “mãe de todos os medos”, o “medo dos medos”, aquele medo ancestral que decorre da consciência da nossa mortalidade e da impossibilidade de fugir da morte.

Embora hoje vivamos imersos em uma “cultura do medo”, a nossa consciência de que a morte é inevitável é o principal motivo pelo qual existe a cultura, primeira fonte e motor de cada e toda cultura. Pode-se até conceber a cultura como esforço constante, perenemente incompleto e, em princípio, interminável para tornar vivível uma vida mortal. Ou pode-se dar mais um passo: é a nossa consciência de ser mortais e, portanto, o nosso perene medo de morrer que nos tornam humanos e que tornam humano o nosso modo de ser-no-mundo.

A cultura é o sedimento da tentativa incessante de tornar possível viver com a consciência da mortalidade. E se, por puro acaso, nos tornássemos imortais, como às vezes (estupidamente) sonhamos, a cultura pararia de repente [...].

Foi precisamente a consciência de ter que morrer, da inevitável brevidade do tempo, da possibilidade de que os projetos fiquem incompletos que impulsionou os homens a agir e a imaginação humana a alçar voo. Foi essa consciência que tornou necessária a criação cultural e que transformou os seres humanos em criaturas culturais. Desde o seu início e ao longo de toda a sua longa história, o motor da cultura foi a necessidade de preencher o abismo que separa o transitório do eterno, o finito do infinito, a vida mortal da imortal; o impulso para construir uma ponte para passar de um lado para outro do precipício; o instinto de permitir que nós, mortais, tenhamos incidência sobre a eternidade, deixando nela um sinal imortal da nossa passagem, embora fugaz.

Tudo isso, naturalmente, não significa que as fontes do medo, o lugar que ele ocupa na existência e o ponto focal das reações que ele evoca sejam imutáveis. Ao contrário, todo tipo de sociedade e toda época histórica têm os seus próprios medos, específicos desse tempo e dessa sociedade. Se é incauto divertir-se com a possibilidade de um mundo alternativo “sem medo”, em vez disso, descrever com precisão os traços distintivos do medo na nossa época e na nossa sociedade é condição indispensável para a clareza dos fins e para o realismo das propostas. [...]

(Adaptado de http://www.ihu.unisinos.br/563878-os-medos-que-o -poder-transforma-em-mercadoria-politica-e-comercial-artigo-dezygmunt-bauman - Acesso em 26/03/2018)





Em relação ao texto I, assinale a alternativa correta.


  • A: Uma das propriedades linguísticas que caracterizam o texto como argumentativo é a predominância de formas verbais no pretérito.
  • B: Os verbos e pronomes em primeira pessoa do plural, presentes em “Poderíamos até conseguir eliminar uma por uma a maioria das ameaças que geram medo [...]” e “[...] é a nossa consciência de ser mortais e, portanto, o nosso perene medo [...]” são fortes ma
  • C: O tipo argumentativo é o eixo da construção do texto, tendo em vista que o autor defende uma tese por meio de relações lógicas de argumentação. Uma dessas relações é a de condição, presente no excerto “E se, por puro acaso, nos tornássemos imortais, como
  • D: Não é possível classificar o tipo textual predominante no texto I, uma vez que os tipos textuais constituem uma lista irrestrita na cultura linguística. Ao contrário disso, os gêneros textuais compõem uma lista restrita, o que possibilita que se classifi
  • E: O amplo uso de figuras de linguagem, especialmente de metáforas, no texto I, é uma pista de que o tipo narrativo é o eixo da construção textual, enriquecendo as formas de expressão do autor a partir do uso de uma linguagem denotativa.

A indústria do espírito

                                                JORDI SOLER – 23 DEZ 2017 - 21:00

O filósofo Daniel Dennett propõe uma fórmula para alcançar a felicidade: “Procure algo mais importante que você e dedique sua vida a isso”.

Essa fórmula vai na contracorrente do que propõe a indústria do espírito no século XXI, que nos diz que não há felicidade maior do que essa que sai de dentro de si mesmo, o que pode ser verdade no caso de um monge tibetano, mas não para quem é o objeto da indústria do espírito, o atribulado cidadão comum do Ocidente que costuma encontrar a felicidade do lado de fora, em outra pessoa, no seu entorno familiar e social, em seu trabalho, em um passatempo, etc. [...]

A indústria do espírito, uma das operações mercantis mais bem-sucedidas de nosso tempo, cresceu exponencialmente nos últimos anos, é só ver a quantidade de instrutores e pupilos de mindfulness e de ioga que existem ao nosso redor. Mindfulness e ioga em sua versão pop para o Ocidente, não precisamente as antigas disciplinas praticadas pelos mestres orientais, mas um produto prático e de rápida aprendizagem que conserva sua estética, seu merchandising e suas toxinas culturais. [...]

Frente ao argumento de que a humanidade, finalmente, tomou consciência de sua vida interior, por que demoramos tanto em alcançar esse degrau evolutivo?, proporia que, mais exatamente, a burguesia ocidental é o objetivo de uma grande operação mercantil que tem mais a ver com a economia do que com o espírito, a saúde e a felicidade da espécie humana. [...]

A indústria do espírito é um produto das sociedades industrializadas em que as pessoas já têm muito bem resolvidas as necessidades básicas, da moradia à comida até o Netflix e o Spotify. Uma vez instalada no angustiante vazio produzido pelas necessidades resolvidas, a pessoa se movimenta para participar de um grupo que lhe procure outra necessidade.

Esse crescente coletivo de pessoas que cavam em si mesmas buscando a felicidade já conseguiu instalar um novo narcisismo, um egocentrismo new age, um egoísmo raivosamente autorreferencial que, pelo caminho, veio alterar o famoso equilíbrio latino de mens sana in corpore sano, desviando-o descaradamente para o corpo. [...]

Esse inovador egocentrismo new age encaixa divinamente nessa compulsão contemporânea de cultivar o físico, não importa a idade, de se antepor o corpore à mens. Ao longo da história da humanidade o objetivo havia sido tornar-se mais inteligente à medida que se envelhecia; os idosos eram sábios, esse era seu valor, mas agora vemos sua claudicação: os idosos já não querem ser sábios, preferem estar robustos e musculosos, e deixam a sabedoria nas mãos do primeiro iluminado que se preste a dar cursos. [...]

Parece que o requisito para se salvar no século XXI é inscrever-se em um curso, pagar a alguém que nos diga o que fazer com nós mesmos e os passos que se deve seguir para viver cada instante com plena consciência. Seria saudável não perder de vista que o objetivo principal dessas sessões pagas não é tanto salvar a si mesmo, mas manter estável a economia do espírito que, sem seus milhões de subscritores, regressaria ao nível que tinha no século XX, aquela época dourada do hedonismo suicida, em que o mindfulness era patrimônio dos monges, a ioga era praticada por quatro gatos pingados e o espírito era cultivado lendo livros em gratificante solidão.

(Adaptado de: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/26/opinion/1506452714_976157.html>. Acesso em 27 mar. 2018)




Sobre tipologia e gêneros textuais, assinale a alternativa correta.





  • A: O texto “A indústria do espírito” apresenta, majoritariamente, a tipologia narrativa, a qual tipicamente emprega verbos no pretérito, como é possível notar neste excerto: “A indústria do espírito, uma das operações mercantis mais bem-sucedidas de nosso t
  • B: Não há um número definido de tipologias textuais, uma vez que elas surgem e desaparecem conforme as necessidades sociodiscursivas de determinada comunidade.
  • C: O segundo parágrafo do texto “Aindústria do espírito” é composto por períodos simples, típicos da tipologia injuntiva.
  • D: A maneira com que o texto “A indústria do espírito” se inicia, utilizando uma citação, é comum no gênero textual carta aberta.
  • E: O texto “A indústria do espírito” é um exemplar do gênero textual artigo de opinião.

 Texto I

            Nossa imaginação precisa da literatura mais do que nunca

LIGIA G. DINIZ – 22 FEV 2018 - 18:44

Vamos partir de uma situação que grande parte de nós já vivenciou. Estamos saindo do cinema, depois de termos visto uma adaptação de um livro do qual gostamos muito. Na verdade, até que gostamos do filme também: o sentido foi mantido, a escolha do elenco foi adequada, e a trilha sonora reforçou a camada afetiva da narrativa. Por que então sentimos que algo está fora do lugar? [...]

O que sempre falta em um filme sou eu. Parto dessa ideia simples e poderosa, sugerida pelo teórico Wolfgang Iser em um de seus livros, para afirmar que nunca precisamos tanto ler ficção e poesia quanto hoje, porque nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o mecanismo livre da nossa imaginação. Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página.

Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores. Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se tornem um mundo no qual penetramos. [...]

Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de “presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para além e para aquém do pensamento racional.

Muitos eventos produzem presença, é claro: jogos e exercícios esportivos, shows de música, encontros com amigos, cerimônias religiosas e relações amorosas e sexuais são exemplos óbvios. Por que, então, defender uma prática eminentemente intelectual, como a experiência literária, com o objetivo de “produzir presença”, isto é, de despertar sensações corpóreas e afetos? A resposta está, como já evoquei mais acima, na potência guardada pela ficção e a poesia para disparar a imaginação. [...]

A leitura de textos literários [...] exige que nosso corpo esteja ele próprio presente no espaço ficcional com que nos deparamos, sob pena de não existir espaço ficcional algum.

Mais ainda, a experiência literária nos dá a chance de vivenciarmos possibilidades que, no cotidiano, estão fechadas a nós: de explorarmos essas possibilidades como se estivéssemos, de fato, presentes. E a imaginação é o palco em que a vivência dessas possibilidades é encenada, por meio do jogo entre identificações e rejeições. [...]

(Adaptado de:<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/22/opinion/1519332813_987510.html> . Acesso em: 27 mar. 2018)




Em relação ao excerto “Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente.”, assinale a alternativa correta.





  • A: O trecho “[...] todo dia, o dia inteiro [...]” poderia ser reescrito da seguinte forma: “todo dia, o dia todo”. Nesse último caso, a palavra “todo” funcionaria como adjetivo nas duas ocorrências, indicando totalidade.
  • B: Em “Somos bombardeados todo dia [...]”, é utilizada a figura de linguagem que leva o nome de anáfora, uma vez que é atribuída a um ser inanimado (informações) a característica de um ser animado (a capacidade de bombardear).
  • C: O excerto é constituído por períodos simples, típicos de textos argumentativos. Esse tipo de construção proporciona o desenvolvimento detalhado de ideias, com adição de circunstâncias e de caracterizações mais apuradas dos eventos.
  • D: O verbo “somos”, flexionado no presente do indicativo, denota uma ação que ocorre concomitantemente ao momento da fala.
  • E: É possível substituir a palavra “saturados” por “fartos”, sem com isso causar prejuízo sintático ou semântico.

    Texto II

[...] Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo — crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera a recebeu e o primeiro esgar da noite que, sim, sim, era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras — desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria. Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora é já, chegou a minha vez! E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a — e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.

Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça não teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito. [...]

(Excerto adaptado e extraído da obra “A Hora da Estrela”. LISPECTOR, Clarice. 23ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.)




De acordo com o texto II, assinale a alternativa correta.

  • A: O narrador, em primeira pessoa, descreve o momento em que a personagem vai à casa de uma vidente e descobre estar grávida.
  • B: Trata-se de um texto predominantemente dissertativo, em que se expõe o relato de uma tragédia ocorrida com Macabéa.
  • C: A mudança na vida de Macabéa, citada em “[...] pois sua vida já estava mudada.”, refere-se à viagem empreendida por ela, que se realizara após encontrar o carro que estava à sua espera.
  • D: O excerto demonstra a fragilidade social da personagem que, ironicamente, teve um momento de esperança antes de ser atropelada.
  • E: A narrativa descreve uma cena trivial de final de tarde, em que Macabéa presencia o atropelamento e a morte de um cavalo.

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